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Das Ideias Italianas às Escolas Gaúchas


Como um congresso na Itália está auxiliando a promover o pensamento computacional em escolas do interior do Rio Grande do Sul.

Em 2017, apenas 21,3% da população brasileira possuía habilidades digitais básicas — um indicador preocupante sobre a defasagem tecnológica no país. Naquele mesmo ano, o professor Edimar Manica participava de uma palestra do ex-ministro da Educação da Itália, Francesco Profumo, durante a 41st Annual IEEE Computer Software and Applications Conference (COMPSAC 2017), em Turim, na Itália.

Edimar, recém-doutor pela área de banco de dados, ficou intrigado com um questionamento lançado por Francesco: quais habilidades deveriam ser desenvolvidas ao longo de toda a Educação Básica para que os estudantes estivessem, de fato, preparados para o mundo do trabalho? Um mercado que, àquela altura, já caminhava aceleradamente rumo à digitalização.

A fala continuou ecoando em sua mente, e ele já não se contentava com pesquisas puramente teóricas. Queria transformar a realidade da educação pública em sua região.

O primeiro passo foi envolver seus orientandos do curso técnico em Informática, incentivando-os a realizar os estágios curriculares em escolas públicas. Já na primeira reunião com alunos e professores, começou a se delinear, de forma colaborativa, a base para os projetos de pesquisa que viriam a seguir.

Dois alunos iniciaram o estágio em uma escola do município de Quinze de Novembro (RS) e foram convidados a indicar quais conhecimentos gostariam de compartilhar. Surgiram então três pilares: gamificação, programação em blocos e robótica. A partir desses elementos, eles desenvolveram atividades práticas — e a recepção de alunos e professores foi extremamente positiva.

 

Gamificação no Ensino Fundamental: como unir educação tradicional e ferramentas digitais

 

O grupo de Edimar encontrou uma base sólida nos preceitos da Educação 4.0, que integra abordagens tecnológicas ao ensino tradicional. Isso significa que ferramentas digitais passam a fazer parte do cotidiano das disciplinas. Diante de tantas possibilidades e conteúdos adaptáveis, surgiu um novo desafio: por onde começar?

Primeiramente, era necessário entender a prática docente em cada turma: quais metodologias os professores utilizavam e de que forma a tecnologia poderia contribuir. O foco inicial foi voltado aos estudantes das séries iniciais do Ensino Fundamental. Nessa etapa, é comum um único professor lecionar todas as disciplinas — o que implica abordagens variadas conforme o perfil de cada docente.

Mais uma vez, o trabalho foi construído em colaboração com os profissionais da escola. As reuniões iniciais serviram para mapear as realidades e adaptar as soluções tecnológicas a cada contexto específico.

Compreendidas as necessidades de professores e estudantes, o grupo decidiu implementar técnicas de gamificação por meio da plataforma Kahoot!, que permite criar jogos de perguntas e respostas sobre os mais diversos temas. Com base nas informações coletadas nas reuniões, os bolsistas desenvolveram questionários personalizados para cada turma, com foco nas dificuldades mais recorrentes entre os alunos.

Enquanto aplicavam os jogos, os bolsistas também coletavam dados sobre a interação dos estudantes e identificavam pontos de melhoria. A colaboração dos professores foi essencial: “O professor olhava, revisava, corrigia, fazia apontamentos — desde o conteúdo em si de cada uma das questões até sugestões sobre como executar aquele Kahoot”, relata Edimar.

O impacto foi imediato — e surpreendente. Os estudantes deixavam o intervalo de lado para continuar jogando, e os professores passaram a solicitar capacitações para criar seus próprios Kahoots. Para Edimar, aquilo era a confirmação de que estava no caminho certo: “A gente conseguiu entender que essa metodologia funciona — e demonstrar isso para os professores também.”

 

Desenvolvendo o pensamento computacional desde cedo: desafios e práticas em sala de aula

 

Identificar o que é eficaz para crianças em fase inicial da aprendizagem foi o principal desafio do grupo. Felizmente, eles contaram com aliados estratégicos: “Tivemos o apoio dos professores das escolas, que conheciam as habilidades e competências esperadas em cada ano. E nós, por outro lado, trazíamos o conhecimento técnico da computação”, relembra Edimar.

Dessa colaboração entre educadores e equipe técnica, surgiram estratégias que tornaram os conceitos abstratos mais acessíveis. A proposta era aproximar o pensamento computacional do cotidiano dos estudantes. Assim, os passos de um algoritmo se tornaram os sete passos para preparar uma pizza. Uma criança assumia o papel de “robô” e a outra era responsável por comandar suas ações.

A combinação entre atividades de computação plugada (com uso de dispositivos) e desplugada (sem uso de tecnologia) permitiu adaptar os mesmos conteúdos — como algoritmos — para diferentes faixas etárias. A contextualização com a realidade dos estudantes também gerou maior engajamento, promovendo uma participação ativa e significativa nas atividades.

 

Desafios da Educação Tecnológica no Ensino Médio

 

Com a expansão do projeto, surgiram novas oportunidades: era hora de levar o pensamento computacional também ao Ensino Médio. O grupo já dominava as estratégias voltadas às crianças do ensino fundamental, mas, com os adolescentes, novos desafios logo se impuseram.

“A gente percebeu que, no Ensino Médio, os alunos precisam de uma motivação muito maior. Nos anos iniciais, qualquer atividade que a gente propunha já os motivava e eles ficavam muito engajados. No Ensino Médio, percebemos uma certa resistência.”

Como um congresso na Itália está auxiliando a promover o pensamento computacional em escolas do interior do Rio Grande do Sul

Ao compreender melhor os interesses dos estudantes do Ensino Médio, o grupo desenvolveu estratégias mais adequadas para esse público. A resistência vinha, sobretudo, daqueles que não pretendiam seguir carreiras ligadas à tecnologia. A solução foi mostrar como o pensamento computacional está presente em diversas profissões — não apenas na computação.

“O pensamento computacional não é útil só para quem vai seguir na área da computação. Ele é útil para todas as profissões. Se eu for médico, talvez vá realizar uma cirurgia robótica. Se for agricultor, precisarei entender de GPS para programar um pulverizador. Eles não vão fugir da computação, independentemente da área que escolherem”, explica Edimar.

 

Educação digital e IA: o Robô LIPE como aliado no ensino de pensamento computacional

Houve um momento em que as ferramentas disponíveis no mercado já não atendiam mais às demandas do projeto. A solução foi clara: criar algo pensado exclusivamente para o público infantil. Com conhecimento técnico e experiência acumulada, o grupo se propôs a desenvolver um jogo que, além de atrativo, fosse um aliado eficaz no ensino e na aprendizagem do pensamento computacional.

Mas, por onde começar? Essa não era uma pergunta nova para o grupo. Como bons cientistas, partiram da pesquisa. Edimar relata que ele e os bolsistas analisaram literatura especializada para identificar as diretrizes pedagógicas e técnicas de um jogo voltado à alfabetização digital. Em seguida, desenvolveram o LIPE 1.0 e testaram a ferramenta com alunos e professores.

Para engajar o público infantil, o grupo desenvolveu uma narrativa envolvente: o Robô LIPE bateu a cabeça e perdeu a memória. Agora, ele não sabe mais como executar um algoritmo — e precisa da ajuda da turma para reaprender. A missão dos participantes é realizar movimentos que são reconhecidos por inteligência artificial e usados para retreinar o robô.

A versão 2.0 do LIPE já prevê melhorias baseadas no feedback de uso em sala de aula. Entre os ajustes estão a otimização do reconhecimento facial dos jogadores e a redução dos textos exibidos nas telas — facilitando a leitura e a compreensão pelos estudantes mais jovens. A nova versão promete tornar a experiência ainda mais fluida e acessível.

 

Computação como Ferramenta de Equidade: Reduzindo Desigualdades Digitais

 

O trabalho do grupo de Edimar vai além do ensino de habilidades técnicas. A inserção no mundo digital é vista como uma estratégia essencial para combater desigualdades sociais. Segundo Edimar, a escola tem o poder de oferecer acesso a equipamentos e conhecimentos que muitos estudantes, de outra forma, jamais teriam.

“O aluno que tem condições financeiras — se ele não vê na escola, vai fazer um cursinho por fora. Mas o aluno em situação de vulnerabilidade social — se ele não vê na escola, não vê em outro lugar.”

O acesso à tecnologia na escola, embora não resolva todas as desigualdades, representa um passo significativo para minimizá-las. Promover a inclusão digital desde o ambiente escolar está alinhado à missão do IFRS: formar cidadãos preparados para enfrentar e superar desigualdades sociais, econômicas, culturais e ambientais.

 

BNCC Computação: formação de professores e currículo digital

 

A BNCC — Base Nacional Comum Curricular — é o documento que define as aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo da Educação Básica no Brasil. Complementar a ela, a BNCC Computação propõe, de forma altamente recomendada (embora ainda não obrigatória), o desenvolvimento de habilidades específicas na área da Computação.

Em todas as escolas municipais de Tapera (RS), a BNCC Computação passou a ser implementada oficialmente. Com essa decisão, surgiu um novo e importante desafio: como capacitar os professores para integrar a tecnologia de forma eficaz na Educação Básica?

Reconhecendo o trabalho que Edimar e sua equipe já desenvolviam em outras escolas da região, a Secretaria de Educação de Tapera solicitou apoio para a formação de professores. O objetivo: capacitar os docentes para implementar, de forma crítica e prática, as diretrizes da BNCC Computação — organizadas em três eixos fundamentais: pensamento computacional, mundo digital e cultura digital.

Nas oficinas, Edimar e o bolsista João Lima vão além da teoria. A dupla apresenta exemplos concretos de como abordar conteúdos abstratos em sala de aula, ampliando o repertório dos professores com atividades aplicáveis à sua realidade. O próximo passo é finalizar uma cartilha reunindo propostas plugadas e desplugadas, facilitando a adoção prática desses conteúdos nas escolas.

O Futuro da Educação Digital: expansão e novos caminhos

 

O que era, a princípio, uma simples ideia se transformou em um projeto que já impactou milhares de pessoas ao longo dos anos. Somente em 2024, eles ofereceram mais de 140 horas de atividades, envolvendo 31 professores e mais de 750 estudantes em três municípios. E esses dados se tornam ainda mais significativos quando lembramos que, em 2023, apenas 30% da população brasileira possuía habilidades digitais básicas.

A equipe quer ir além. O próximo passo será a criação de uma disciplina eletiva no curso de Ciência da Computação do IFRS Campus Ibirubá. Nessa disciplina, os estudantes poderão aprofundar seus conhecimentos sobre o ensino de computação na educação básica.

Com o aumento da demanda por capacitações, Edimar sinaliza a possibilidade de criação de cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) no campus. Assim, os professores poderão participar de atividades formativas presenciais em Ibirubá, contando com uma infraestrutura completa voltada ao ensino de computação.

 

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